sábado, 9 de janeiro de 2010

A única entrada para Gaza é a do ano-novo

A única entrada para Gaza é a do ano-novo
Por Mohamed Habib
Entre o governo israelense, o egípcio e a autoridade palestina, o povo de Gaza vem sofrendo desde 1948, com expressiva piora após 1967 e entrando em um total caos a partir de 27 de dezembro de 2008. Esta última data marcou o início das três semanas da operação mais criminosa que o exército israelense cometeu contra os palestinos de Gaza, levando à morte mais de 1.400 pessoas, grande parte crianças, e ainda deixando mais de 15.000 feridos. Hoje, um ano depois dessa operação de limpeza étnica, os palestinos sobreviventes de Gaza continuam submetidos ao terceiro ano consecutivo de total cerco e isolamento, sem acesso a medicamentos, alimentos ou ajudas humanitárias. Todas as entradas estão bloqueadas, tornando a região sitiada. E o mundo assiste de camarote.

Espera-se que o governo israelense aumente cada vez mais o cerco, contando sempre com o apoio explícito do governo imperialista norte-americano. No Oriente Médio, e mesmo fora dele, muitos analistas políticos expressam a sua surpresa pela postura do governo Mubarak, que age como grande aliado do governo israelense, impedindo a entrada mesmo dos comboios humanitários e construindo uma muralha para isolar cada vez mais o povo de Gaza. Alguém tem dúvida de que esse isolamento levará à sua lenta e gradativa morte coletiva, sem alimentos, sem água e sem medicamentos? Da minha parte, como simples observador do comportamento do eterno governo Hossny Mubarak, não vejo surpresa alguma. De fato, esperava por tudo isso e muito mais. O governo do Cairo, sem noção do tempo ou do espaço, limita-se em sua análise ao espaço de residência do governante e ao tempo de conversa com os seus auxiliares. Apenas perguntaria ao senhor eterno e onipotente, no entanto, sem clemência e muito menos misericórdia, que desgoverna o Egito há mais de 28 anos, como era o estado nutricional, a qualidade ambiental, a saúde e a dignidade dos palestinos na era Nasser, ou mesmo na era Sadat? Que contribuição positiva deu aos palestinos? Quais foram os programas desenvolvidos pelo seu governo para oferecer condições mínimas aos palestinos sobreviverem a esse estado de calamidade? O mais trágico é que tudo isso aconteça contra a vontade do próprio povo egípcio, que ele, Mubarak, reprime com mão de ferro e ao qual também renega condições dignas de vida e de humanidade.

Israel e EUA não precisam de mais representantes na região. Os palestinos, sim, necessitam de um governante árabe que lidere um processo político que possibilite construir frentes árabes capazes de pressionar o mundo central na busca de uma solução justa para os dois povos em conflito. Ao mesmo tempo, os palestinos necessitam de apoio e de programas de desenvolvimento, incluindo saúde, educação, habitação e trabalho, para que eles possam formar quadros políticos, líderes e porta-vozes.

O gigante árabe está adormecido, anestesiado, amedrontado e enfraquecido. Os povos árabes necessitam de um movimento reformista e democratizante, elegendo políticos e governantes qualificados, honestos e comprometidos com os seus povos naquela região. Os EUA precisam manter alguma coerência, entre a prática e o discurso. Defendem a democracia, porém, nunca criticaram os 28 anos de “governo” de um “presidente da República”, apenas por ser um aliado. Sentindo o sabor da democracia brasileira, fico envergonhado quando vejo a Constituição egípcia e a eternização dos governantes. Não há mandato. Há apenas o início do governo, o final fica por conta da ordem divina. A era Nasser terminou quando o presidente morreu. A de Sadat quando este foi morto. Seria essa uma cláusula constitucional?

Os comboios de diferentes regiões do mundo ficaram parados por semanas, impedidos pelas autoridades egípcias de entrar em Gaza*. Como diz o provérbio árabe: “Não tem clemência e não deixa a clemência de Deus chegar aos que necessitam.” O governo egípcio, a meu ver, comete um crime contra a humanidade. Os que acreditam no Dia do Juízo, podem ter certeza, haverá a punição. No Brasil, dizemos: A justiça tarda, mas não falha. Aguardaremos. O meu consolo está na ciência. As ciências ecológicas nos ensinam que as forças de pressão negativa levam à evolução. O sofrimento dos árabes em geral, e o dos palestinos em particular, levará ao aprimoramento e à evolução desses povos, que a história está sendo escrita, e um dia o sol voltará a nascer no Oriente Médio.
Mohamed Habib é vice-presidente do Instituto da Cultura Árabe. Nasceu no Egito, tendo se graduado pela Universidade de Alexandria. É doutor e livre-docente pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), na qual é professor titular do Instituto de Biologia. Desde 2005 é pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários dessa instituição.
* Nota da redação: Segundo notícia publicada no Portal Arabesq, em 6 de janeiro, finalmente os comboios conseguiram entrar em Gaza, após exaustiva negociação. Mesmo assim, 48 veículos foram barrados e impedidos de ingressar no território palestino ocupado.
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